terça-feira, 10 de dezembro de 2013

*100

Era uma manhã fria, o fim do outono trazia consigo um ar entediante. Por ter acordado cedo, não encontrei nada de muito útil para fazer em casa, porventura, surgiu-me a ideia de passear pelas ruas, era o que a timidez do silêncio indicava. Subitamente, coloquei meu casaco e resolvi caminhar pelos arredores da cidade. O passeio estava monótono, porém era belíssimo ouvir os pássaros cantando. Até que, na metade de meu trajeto errante, observei o cemitério da cidade, com uma umbrosidade que foi célere em me aliciar. 

Adentrei e fiquei a reparar alguns túmulos, quando um me chamou grande atenção, pois sobre a sepultura desse estava um papel - na verdade, uma folha arrancada de um caderno, ainda com as marcas do espiral - com um texto nele escrito. Resolvi me aproximar, mesmo receoso, e, quando me vi em frente ao sepulcro e do papel, ponderei se deveria ler aquilo ou não, mas sabemos que a curiosidade é sempre maior que o pudor. Antes de consultar a folha, procurei identificar qual pessoa jazia naquele túmulo: era uma mulher que falecera havia apenas um mês, estava com amáveis 62 anos. Irrequieto, decidi pegar o papel e lê-lo, achei estranho, pois aquela delicada folha, apesar de amarrotada, estava completamente legível, mesmo com a forte chuva que havia ocorrido na última noite, o que aguçou ainda mais meu interesse. Pois bem, sentei-me na própria sepultura daquela mulher e me pus a ler o que estava escrito naquele curioso papel. Senti um grande impacto após ler aquilo e, por isso, relato para vocês o quê, naquela simples folha, estava escrito:

"Oi, mãe. Não sei com qual maneira deveria me comunicar contigo, porém, lembrei-me que escreveste uma carta para mim quando eu tinha nove anos, tu viajaste para visitar meu avô, após uma semana que estavas distante eu imaginei não estar com saudades de ti, mas quando eu li tua carta, emocionei-me com tuas palavras, disseste-me que eu devia estudar para a provinha e que o papai iria me ajudar já que tu não estavas lá. Corri para meu quarto e chorei, nem me importava com os gibis que me deste de presente junto com a carta, eu só queria te ter comigo, pois, enganei-me, eu sentia muito tua falta.

Hoje acordei cedo, com a mesma preguiça que sempre te irritou. Não, não arrumei a cama e nem adianta reclamar, hoje a cama passará o dia desarrumada. Pois é, eu também tomei meu café-da-manhã, mas dessa vez lavei a louça, aprendi que quando eu não fazia isso tu ficavas de birra comigo e não fazias o pudim de chocolate que eu e meu pai tanto amávamos. 

Nesse momento, lembrei-me daquela vez que te pedi para me ensinar a fazer o melhor pudim do mundo, queria que minha namorada, que viria no dia seguinte, comesse-o de sobremesa na primeira vez que ela nos visitaria. Porém, tu tinhas que sair à noite para trabalhar e voltarias tarde, mas ainda assim rapidamente me ensinou e me deixou sozinho com os ingredientes. Eu me esforcei, mas não consegui fazê-lo, ficou com uma aparência horrível e um gosto ainda pior, fiquei muito irritado, deixei aquele pudim ridículo na pia junto às louças sujas e fui dormir. Na manhã seguinte, acordei as onze horas, logo fiquei bravo com a piada que fizeste sobre o meu fracassado pudim. Após almoçarmos me surpreendi quando disseste: 'Teu namorado ficou a noite toda preparando para ti essa sobremesa.'. Tu foste buscá-la sorrindo e a comemos também sorrindo, acho que foi o melhor pudim de chocolate que tu fizeste - ou quê, entre nós, eu fiz. De fato, não valeu tanto a pena, aquela semana que te preocupaste por eu só ficar trancado no meu quarto foi a semana em que a mesma namorada terminou comigo, é, acho que nunca deixei clara essa história para ti.

Aposto que tu sabes que a casa está uma bagunça agora sem ti, acho que eu puxei para o pai como tu sempre me dizias. A todo momento tu te queixavas dos modos ruins que eu e ele tínhamos, sempre deixando tudo pelo caminho e sujando toda casa. Lembro também quando lemos juntos para ti aquele texto do Carlos Drummond de Andrade, Casa Arrumada, sorriste muito e eu percebi que escondeu tua emoção, mesmo falando depois que não poderíamos usar o texto como desculpa. Também me lembro daquela vez que fiquei um mês na praia e tu me ligaste para dizer que a casa estava limpa e que sentias saudades e eu respondi que sabia que tu gostavas da casa do jeito bagunçado que nós sempre deixávamos.

Lembrei das brigas também, mas agora elas não fazem mais sentido. Enfim, agora eu digo por que senti tua falta e te escrevi isso, é por que hoje eu recolhi a roupa. Sabes, tu sempre costumavas deixar irritantes mensagens de voz na minha caixa postal, que não diziam nada, era tu que não sabias mexer no celular e esquecias de encerrar a ligação antes. Decidi apagar aquele sinal incomodativo da caixa postal que estava no meu celular há uns três meses. Dentre todas as mensagens erradas de ti e do pai, ouvi uma que tinha tua voz, me enviaste no dia do casamento da tua irmã. Lembro-me de ti desesperada, ligando-me umas quinze vezes para tirar do varal as roupas que iríamos usar no casamento naquela noite, eu estava dormindo e não te atendi e a chuva molhou todas as roupas. Só hoje que eu fui ouvir: 

'Filho, recolhe a roupa que vai chover.'

Desculpa por aquele dia, mas hoje, fica tranquila, eu recolhi.

Te amo, mãe."